sábado, 17 de abril de 2010

outra prévia...


- Nem ferrando que dá pra sair vivo e em paz depois da leitura de Antono Callado, minha uva. Quarup é um livro chave, da mesma espécie caudalosa e borbulhante que o Ulisses de James Joyce. Ou estarei cometendo um pecado? Pecadilho, diria. Callado é muito justo na sua readaptação de uma jornada mitológica no decorrer de uns dez poucos anos, iniciados pouco antes da morte de um Getúlio Dorneles Vargas (com tudo lá, até o tirambaço no pé de Carlos Lacerda e outro, fatal, no major da Força Aérea Rubens Florentino Vaz – confira na Wikipédia, o Crime da rua Tonelero), culminantes com o golpe de 64 – que se estende para muito além das páginas, tudo testemunhado por um protagonista tão inconsciente do seu papel mutatório de si mesmo, tão charmoso em suas dúvidas e perfilado em chão de terra, na Pernambuco de Miguel Arraes, que é como se avalia no livro de reportagens, Tempo de Arraes (com duas edições, uma antes de 64, pela Civilização Brasileira, que o meteu na prisão – onde rabiscou as primeiras linhas do que viria a ser o Quarup, e outra de 79, na abertura, uma cópia que tenho, da editora Paz e Terra, que, coincidentemente, tinha seu conselho editorial encabeçado por Callado, Antonio Candido e Fernando Henrique Cardoso), um livr’reportagem que tinha sido precedido por outro, Os Industriais da seca e os galileus de Pernambuco, de 59, construído em cima de série de reportagens feitas especialmente para o Jornal do Brasil. Acontece que em Tempo de Arraes, Callado já enfia uns dois ou três indivíduos que ele romanceia em Quarup. Ou seja, tudo gente fina, realesca, como os demais que o padre Nando, o protagonista herói-picaresco do livro, começa a encontrar no seu caminho, que se traça em sete partes, das quais, e agora volto a me arranhar com o Ulisses de Joyce, tão heróico, tão num único dia, dieróico, não é de se espantar que eu queira me arriscar, nessa enfiança texto adentro, um orgasmo de linhas. Esporreação de palavras convertidas em 4D, mulher! A realidade entre as linhas de um livro são as únicas que nos cabem. E caçando a realidade entre páginas por que não encontrá-la no quarupizante épico do Callado? E lá está, ao menos para mim, iniciada em sorumbático silêncio de quem só conhece a própria voz e é incapaz de se comunicar com Deus, O Ossuário, primeiro capítulo, de desventuras e andanças não tão pesadas, só imploradas, esprimidas e sangradas e molhadas e manchadas nas cuecas e dentes trincados pela noite adentro, muito teórica, muito muito. Isto tudo para se desprender no capítulo seguinte, O Éter, onde enfiamos pelo nariz todo o exagero que ousamos não pedir, e esperamos uns outros personagens estranhos, uns defendendo que crianças sejam infladas como balões, levadas ao céu no paraíso color-entorpecido dos lança-perfumes, enquanto, padreco Nando já tendo descoberto o sexo, agendamos um anúncio, um pré-acontecimento – este é o intervalo negro, mas não se diz inconseqüente, que culmina n’A Maça, terceiro capítulo, qu’é onde eu estava, e que apesar de ser negro (é nele que Getúlio morre, se morre, morre-se o Getúlio Vargas com uma bala na cabeça), é também transformador, porque ressuscita uma série de modos e maneiras de antanho, du’antes de se fazer necessário ter roupa, do antes de ser preciso fingir e chantagear pelo amor e pela dor, de tão antes que até parece efeito do éter – tanto que Sonia se enfia na mata e não volta, e é bem capaz d’ela ter é morrido junto do seu índio papilão. E é só n’A Orquídea que se pode enfiar depois de tão áspero batizado (que, é claro, só se batiza de verdade um homi que sai dos osso e se enfia pela eteriedade e depois se vira alimento-pecado e se cospe de volta pra brotar em flor ness’mundo), que é onde se procura o centro (Callado, tão sutil, cisma de falar também dessa mística), e te enfia floresta adentro, onde a busca não é o que se pensa, mas a quase-morte que ela causa é real e está lá, e para quem sobrevive, só há o caminho (só há um caminho, é claro), A Palavra, o quinto capitulo, onde a realidade se reconstrói em sílabas e tijolos deixam de ser parte da casa pra se fazer casa, se fazer objeto de valor, conquanto que seja mesmo a palavra que constrói o mundo, que é preciso sacrificar prazer e medo em prol da revolução que ainda não é clara, não é só beleza e desejo e satisfação e alegretes do sexto capítulo, A Praia, que ainda não veio, e que é tão belamente ilustrado, com paredes cheias de palavras (LE-VIN-DO) e quartos e redes e barcos e areias e chãos e puteiros todos cheios tão cheios de bucetas e pancadas e torturas e cegueiras que te jogariam, enfim, n’O Mundo de Francisca, onde o caminho escondido dos santos era o caminho perfeito do pecado, e do adeus, adeus, porque o mundo segue para além das páginas.