sexta-feira, 24 de junho de 2016

A Metaficção

Onde é o lado de lá da realidade? Para onde convergem, de onde procedem os fios que tecem a trama de nossas vidas? E quem observa essa trama, fora do tempo e do espaço, entre as frestas e batidas do coração? A resposta está na Teoria da Flor de Lótus, e pelas ruas desta Macuco literária e alucinógena, desta Macuco alucinada e reflexiva, onde a realidade é desfolhada pelo sopro suave de um tempo não-linear, e as histórias que tomam forma apontam para O Que não tem forma, nem nunca terá.
Lucio Manfredi, escritor, roteirista e dramaturgo

"um lençol pendurado na parede com fios de diferentes cores se entrecruzando, vibrando-se plenipotencialmente – ele explicava a realidade quotidiana dessa forma, como um acadêmico experimentado versaria sobre física quântica e a teoria matemática do caos."
   A postagem de hoje é sobre metaficção, segunda parte do Manifesto Tocando anu para Cantagaloliteratura sobre literatura, onde, embora se saiba personagem, o autor ainda é uma figura externa, buscando na experiência narrativa mais do que a construção de um arco ficcional relevante, uma história de ecos que se traveste de completude nas migalhas do pão. E se essa opção do micro tomado pelo macro parece dotada de uma grandiloquência exacerbada, lembramos que as ambições desta empreitada não se propõem a ditar as regras, desenvolver uma linguística “definitiva” de uma geração de criadores, no que concerne à narrativa regionalista. A intenção é o picaresco, o agoniante, a recriação de uma realidade insubmissa às leis da ficção, entregando a criação de personagens a uma mutação constante;

    Como dito em postagem anterior, tudo se conecta pelos Fios de Zacarias, mas não apenas por ele.
Sei que Darío também tivera contato com o painel de Zacarias, apesar de não saber como isto o afetou. Teve gente, no passado, que viu aquilo como algo maligno. As conexões estariam dispostas em formato muito semelhante as ruas e bairro de Macuco. Um amigo, Pedro Neto, garantiu-me que chegou a identificar praças e viradores na multidão de oroboros vermelhos que pareciam infestar-se de maneira vívida pelo lençol pendurado na parede velha. Darío é um encantado pela multitude familiar e caoticamente orgânica que ele encontra nas cidades do interior, e Macuco em particular lhe traz nuances muito atrativas. Me parece que ele passa horas e horas trancado e debruçado sobre a máquina de escrever, aparentemente tentando descoerentizar as próprias histórias, implicando uma complexa rede de ações que não necessariamente se interligam, apenas existem por si próprias, alheias as vontades temporais a que se submetem certas narrativas. (...) Ele diz que o que está fazendo, o que está escrevendo, implica em converter o imaginário em algo real, esperando tocar as pessoas, recuperar suas vontades de integração e encadeamento de eventos. Algo que, ao mesmo tempo em diz buscar uma nova integração de pessoas em lugares, parece trabalhar muito melhor com a ideia romântica de se atravessar o fluxo do tempo, arregaçar as limitações naturais e botar pra foder na panela de caldo quântico do que já passou e passará.

        Visto que o presente trabalho é também uma cartografia sobre a composição e arregimentação de elementos e histórias diversas, que se entrelaçam a fatos cotidianos e observações sobre a memória recente do município de Macuco, é válido que se pare para pensar por um momento como a metaficção local pode ser utilizada pelo autor de Tocando anu para Cantagalo.
A metaficção inclui as questões da pós-modernidade conforme Jair Ferreira dos Santos, “(...) o romance deve se tornar uma imitação deliberada do romance, dos gêneros literários ou de qualquer outro texto apto a injetar-lhe sobrevida.” (SANTOS, 1995, p. 62) Para Jair, a pós-modernidade garante ainda uma metaficção, literatura sobre literatura, onde o burlesco tem um papel importante:


O burlesco, que é o exagero cômico, vai ser o tom dominante na metaficção. Uma estética jocosa, fantasista, não-modernista, do absurdo passará por ele. Gênero menor, modo temático e estilo narrativo, o burlesco, em ação na literatura inglesa desde o séc. XVII, surrupiado ao francês Scarron, é um dispositivo de paródia que faz rir pela incongruência entre o fundo e a forma (algo assim como transpor a Eneida com a linguagem virgiliana para o meio de uma família calabresa vivendo hoje no Brás). Para fazer rir, o burlesco convoca toda a baixaria: sexo, violência, drogas, loucura, perversão, escatologia – a parte maldita com a qual o pós-modernismo, sem ilusões ante a sociedade tecnológica, desanca o projeto Iluminista em sua crença na emancipação do homem pelo conhecimento e o progresso. Nessa mesma trilha, o burlesco é ainda a parte intertextual por onde os autores pós-modernos cruzam o fosso (bem modernista) entre arte culta e arte de massa: ficção científica, romance policial, conto de fadas, pornografia, western e quadrinhos são alegremente canibalizados pelos espíritos mais requintados. (IDEM, pp. 62-3)


   Vale dizer ainda que, embora se saiba personagem, o autor ainda é uma figura externa, que supostamente deveria prestar atenção a detalhes e controlar as ferramentas narrativas, tal qual nos instrui Foucault em seu ensaio O que é um autor?:


(…) A noção de autor constitui o momento forte da individualização na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também, e na das ciências. Mesmo hoje, quando se faz a história de um conceito, de um género literário ou de um tipo de filosofia, creio que tais unidades continuam a ser consideradas como recortes relativamente fracos, secundários e sobrepostos em relação à unidade primeira, sólida e fundamental, que é a do autor e da obra. (FOUCAULT, 1992, p. 33)


    Se o texto aponta para o autor, se a sua relação é, em primeiro lugar, com o autor, então as personagens seriam um reflexo disso, não? Foucault (1992) antes de tudo nos lembra que a escrita, hoje, é liberta dos temas da expressão, só se referindo a si mesma, sem no entanto, se aprisionar em sua interioridade: “(...) identifica-se com a sua própria exterioridade manifesta. (…) é um jogo ordenado de signos que se deve menos ao seu conteúdo significativo do que à própria natureza do significante.” (IDEM, p. 35) O jornalista e acadêmico Antonio Olinto, ao falar sobre a obra de James Joyce, nos diz algo semelhante, alertando-nos para o fato de que


As palavras também morrem. Deixam de ser prenhes de sentido, tornam-se meros sons vazios, fofos, sem fixação no pensamento. Para Joyce, mesmo o instrumento de comunicação diárias estava tocado de decadência. Então quebrou os vidros que o envolviam, e através dos quais só via fiapos de movimentos vagos na paisagem, e criou um mundo à imagem e semelhança de sua angústia. (OLINTO, 2008, p. 61)


      “Tocando anu para cantar galo” ou apenas Cantagalo1, é expressão usada há muito para designar aqueles que encontram-se em situação de desespero, com o dinheiro curto ou simplesmente sentindo-se prejudicados de alguma forma. O anu é um pássaro preto, que, conforme se aprende na região, vive próximo a cercas e pastos onde carrapatos se proliferam. De certa forma é um pássaro de mau-agouro, seja pela sua cor, seja pela sua proximidade com os corvos, ainda que na região também seja comum a presença de anus brancos, mais atrativos esteticamente.
      Mas são os anus pretos e o mau-agouro que trazem com eles que dão o tom dessa farsa que se pretende analisar ao mesmo tempo em que é criada. Uma farsa como todas, que abre mão dos referentes, que anula o realismo e cujo autor está imerso em suas angústias.
     O romance Tocando anu para Cantagalo e as histórias que o formam abdicam em parte da realidade para a gestação de uma realidade nova, diferenciada do palpável, adotando das narrativas modernas, dos gêneros populares e das mídias que os difundem, suas principais características: serialização das tramas e construção de uma realidade calcada em um determinado número de elementos que produzam uma segurança metafórica, com a criação de uma mitologia particular, dando unidade às diversas tramas. Embora no texto pareça que há uma exclusão do “onde é que eu tô, para onde é que eu vou e de onde que eu sou?” como questões de vital importância, Jair Ferreira dos Santos nos lembra que:

A metaficção no entanto não é apenas uma fisiologia do escabroso e do bizarro nem os funerais de gêneros que se esgotaram. Contra-romance que imita o romance, ela quer ser uma nova epistemologia literária, um desmascaramento das convenções ficcionais mantidas intactas pelo próprio modernismo, e por aí, criando mundos verbais alternativos, ser um ataque à atualidade, onde, segundo Borges, é total “a contaminação da realidade pelo sonho”. (SANTOS, IDEM, p. 63)


      Ou seja, busca-se na experiência narrativa muito mais do que uma construção de um arco ficcional relevante. É uma história de ecos que se traveste de completude nas migalhas do pão (se é que podemos fazer uma alusão a Proust nesse ínterim). E se essa opção pelo micro tomado pelo macro parece dotada de uma grandiloqüência exagerada, lembramos que as ambições deste projeto não visam o desenvolvimento lingüístico “definitivo” desta geração no que concerne à narrativa regionalista. Longe de tal ousadia. A intenção é recriar a realidade com um certo ar picaresco.


Nessa mesma trilha, o burlesco é ainda a ponte intertextual por onde os autores pós-modernos cruzam o fosso (bem modernista) entre arte culta e arte de massa: ficção científica, romance policial, conto de fadas, pornografia, western e quadrinhos são alegremente canibalizados pelos espíritos requintados. (SANTOS, IBIDEM IDEM, p. 63)


         E como recriar uma realidade que não se submete mais às leis da ficção, quando as ferramentas narrativas várias que se apresentam na contemporaneidade, praticamente todas se servem e bebem exaustivamente de uma revolução generalizada, provocada pela literatura jovem dos beats? Pois, mesmo que efetuado há mais de cinqüenta anos, o movimento, hoje não tão jovem, ironicamente permanece longe de ser careta. Como se atrever à criação de um universo reflexivo e vivo da pulsante e infinitamente criativa (e ao mesmo tempo quadrada, retrograda) sociedade contemporânea?
John Bart diz que a literatura dos últimos cinqüenta anos passou por dois processos distintos e, inerentemente, iguais. Em 1967, no ensaio A Literatura do Esgotamento, declarou que a busca por uma ruptura do pensamento dentro das linhas tradicionais era uma rebeldia que se entregava à auto-devoração, metaficção por auto-conhecimento (o texto consciente de si mesmo). Curiosamente, enquanto Barth diferenciava o romance realista (sobre o mundo que é), o romance modernista (sobre o mundo que poderia ser) e o romance pós-moderno (sobre mundos que não podem ser, que se contradizem), Gabriel García Márquez despeja sobre o mundo o multitudinário Cem Anos de Solidão, que alimenta personagens de contos e novelas anteriores, além de municiar o autor com cenários que viriam a ser aproveitados futuramente em sua própria obra. Sobre isto, diz Mario Vargas Llosa:

Dificilmente poderia fazer, uma ficção posterior a Cem Anos de Solidão, o que esta novela faz com os contos e novelas precedentes: reduzi-los a condição de anúncios, de partes de uma totalidade. Cem Anos de Solidão é essa totalidade que absorve retroativamente os estágios anteriores da realidade crítica, acrescentando novo material e edificando uma realidade com um princípio e um fim no espaço-tempo: como poderia ser modificado ou repetido o mundo que esta ficção destrói depois de completar? Cem Anos de Solidão é uma novela total, na linha dessas criações absolutamente ambiciosas que competem com a realidade real de igual para igual, entregando uma imagem de vitalidade, vastidão e complexidade qualitativamente equivalentes. (LLOSA, Mario Vargas, 2007, p. XXV)2


Treze anos depois, Barth voltaria ao tema com o artigo A Literatura da plenitude, onde ele revela ter repensado a questão, observando que a literatura pós-moderna deve esvaziar-se da necessidade de figurar em alguma escola ou listagem, assim como não é necessariamente um desenvolvimento do projeto modernista, porém descartando o sentido da criação como algo sublime, deixando a visão romântica de lado em prol de uma literatura que não imita nem repudia seus genitores. Ele recusa a necessidade de uma literatura que se soerga a uma sobrevida baseada na quantidade de textos analíticos que acompanhem o leitor durante a jornada empreendida na leitura. “Ninguém precisa mais de outros Finnegans Wake acompanhados de suas equipes de professores dedicados a explicá-los” (BARTH apud SANTOS, 1995), disse Barth, que também elogiou o Cem Anos de Solidão de García Márquez como uma literatura deliciosa, “rica em proteínas” (IDEM).

Se os modernistas, erguendo a tocha dos românticos, nos ensinaram que a linearidade, racionalidade, consciência, causa e efeito, ilusionismo ingênuo, linguagem transparente, anedota inocente e convenções morais de classe média não são toda a história, então, segundo a perspectiva das últimas décadas do nosso século, poderíamos admitir que o contrário de todas essas coisas também não são toda a história. Disjunção, simultaneidade, irracionalidade, anti-ilusionismo, anti-reflexão, o-meio-como-mensagem, olimpianismo político, a idéia do artista como herói e um pluralismo moral que beira a entropia tampouco são toda a história.” (IDEM)


É uma maneira de se estabelecer conexão com uma realidade literária fictícia em andamento com base em narrativas contemporâneas.
         Seus próprios dramas, no entanto, geram a auto-sustentação e constante revigoração pela grande variedade de frentes midiaticas às quais as personagens são expostas. Assim como intentamos fazer aqui com os diversos caminhos narrativos de Tocando anu para Cantagalo.
       Então, se há alguma temeridade no que se refere à construção das personagens, antes há essas outras, mais imediatas, onde a linguagem e as propostas às quais o autor se entrega, devem ser trabalhadas e pensadas como objetos em mutação constante. Afinal, Tocando anu para Cantagalo é obra em progresso iniciada em 2002, treze anos, uma adolescência e um começo de vida adulta atrás, donde se conclui que o autor aqui entregue a esta cartografia muito viveu e, aos olhos dele, até penou, riu, amou e sobreviveu. Assim, suas influências, gostos e deliberações se modificaram o bastante para justificar as transformações as quais se submeteram também as personagens.

1 Cidade natal de Euclides da Cunha e do autor deste texto.
2 Difícilmente podría hacer uma ficción posterior con Cien años de soledad lo que esta novela hace com los cuentos y novelas precedentes: reducirlos a la condición de anúncios, de partes de uma totalidad. Cien años de soledad es esa totalidad que absorbe retroactivamente los estádios anteriores de realidad ficticia, y, añadiéndoles nuevos materiales, edifica una realidad con un principio y un fin en el espacio y en el tiempo: ¿cómo podría ser modificado o repetido el mundo que esta ficcíon destruye después de completar? Cien años de soledade es una novela total, en la línea de esas creaciones demencialmente ambiciosas que compitem con la realidad real de igual a igual, enfrentándose una imagen de una vitalidad, vastedad y complejidad cualitativamente equivalentes. (tradução minha) 
 
 

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